Mais que uma lembrança [parte 19]
Parte da série Mais que uma lembrança
Não sei há quanto tempo eu tinha dado boa noite ao Vinicius. Só sei que eu ainda não tinha conseguido dormir! Fiquei quieto, deitado, eu não queria tirar a noite de sono dele. Fiquei ali, reproduzindo mentalmente o meu dia. Repensando tudo o que o Vinicius tinha me contado. Analisando os fatos, como se eu fosse achar alguma inconsistência (não que eu estivesse procurando uma, eu acreditava totalmente no Vinicius).
Logo eu percebi que o quarto se iluminou um pouco. Eu estava de costas pra cama, mas tentei me virar e vi o Vinicius mexendo no celular. Estava no Facebook, e tudo o que ele fazia era percorrer o feed de notícias! Fiquei observando seu rosto sob a luz do celular, ele tinha lábios finos, e seu cabelo estava meio bagunçado.
Lucas: Não consegue dormir?
Vinicius: Me assustou...
Lucas: Desculpa...
Vinicius: Tudo bem... To sem sono! Te acordei? Desculpa!
Lucas: Não acordou, não! To sem sono também!
Vinicius: Algum motivo?
Lucas: Não sei dizer...
Vinicius: Hum...
Lucas: Você tem algum?
Vinicius: Também não sei... Acordei cedo hoje.
Lucas: Eu acordei onze da manhã...
Vinicius: Que vidão...
Lucas: É entediante...
Ele riu...
Vinicius: Tenho saudade da minha mãe...
Lucas: Do seu pai não?
Vinicius: Não... Nunca fui muito apegado ao meu pai...
Lucas: Por que?
Eu me sentei, e ele fez o mesmo...
Vinicius: Ele sempre foi machista e acomodado... Ele era aquele tipo de homem que quer tudo pronto pra ele, não ajuda em nada e reclama de tudo o que não é feito do jeito dele. Se ele sentava na mesa pra comer e esquecesse de pegar um garfo, era minha mãe quem tinha que levantar e ir pegar um garfo pra ele... Ele é assim com tudo... Eu nunca me conformei com isso. Mas procurava não esquentar a cabeça. Tenho dó da minha mãe que vai ter que aguentar ele sozinha agora.
Lucas: Você tem que seguir em frente, Vinicius... Você não pode tomar os problemas dos outros pra si mesmo... Por mais que você queira.
Vinicius: Você é um pouco frio, né?
Lucas: Uma pessoa especial pra mim me disse isso uma vez... Ou disse algo parecido!
Vinicius: Namorada na área?
Lucas: Não... - falei que não, mas não posso dizer que foi mentira! O Bruno era meu namorado! E não namorada!
Vinicius: Hum... Saquei...
Lucas: Você não tá namorando ninguém mesmo?
Vinicius: Tô... Mas a pessoa ainda não sabe...
Demos risada juntos. Não perguntei quem era a pessoa, porque ele não tinha perguntado quem era a "pessoa especial" de quem eu falei. E também por um pouco de medo da resposta!
Lucas: Espero que tudo dê certo pra você!
Vinicius: Obrigado... Também espero!
Lucas: Posso perguntar uma coisa meio íntima?
Ele riu, e respondeu que sim.
Lucas: Você era ativo ou passivo?
Vinicius: Passivo...
Lucas: Hum...
Vinicius: Por que a pergunta?
Lucas: Por nada...
Vinicius: Tá né...
Lucas: To começando a ficar com sono... - falei bocejando.
Vinicius: Vamos tentar dormir então!
Lucas: Tá!
Me deitei de novo e dessa vez eu peguei no sono em pouco tempo! Lembrei do Bruno antes de dormir, e pedi mentalmente pra que ele acordasse logo!
Acordei um pouco sonolento, olhei no meu celular e vi que ainda eram seis e meia da manhã. Olhei pro lado e não vi o Vinicius na cama. Me levantei e fui em silêncio até a cozinha, ouvi minha mãe e ele conversando... Ele estava contando a história de novo pra minha mãe. Ele contou exatamente da mesma maneira que contou pra mim... Só mudando as palavras, claro.
Fiquei em pé, ali mesmo, ouvindo tudo... Talvez tivesse sido mais correto eu ir até a cozinha. Mas na hora eu não pensei nisso. Ele contou toda a história, mas ele me surpreendeu quando disse, no final: [...] eu fiquei muito feliz quando o Lucas me mandou mensagem ontem de tarde. Eu estava me sentindo sozinho naquele apartamento, não conversava com ninguém havia dias, só saía pra almoçar e comprar algumas coisas no supermercado! Se me deixar usar uma frase feita, um clichê, talvez, eu queria usar: "ele estendeu a mão pra mim, e me ajudou a levantar".
Minha mãe deu uma risadinha.
Jaqueline: É a cara do Lucas... Tem hora que ele faz essas coisas sem perceber...
Vinicius: Como?
Jaqueline: Ele é minha inspiração, Vinicius! Quando eu chego em casa na hora do almoço, ou no final da tarde, minha maior alegria é ver meu filho! Ele é tão bondoso, pra certas coisas, eu queria ser como ele... Só que muitas vezes nós só sabemos reclamar, e pensar em nós mesmos.
Me sentei no chão e fiquei ouvindo... Minha mãe nunca tinha dito aquilo pra mim!
Vinicius: Ele é um amigo que eu não quero perder nunca!
Jaqueline: Se eu perguntar uma coisa, promete ser sincero comigo?
Vinicius: Claro!
Jaqueline: Você só vê ele como um amigo?
Vinicius: Tem que ser assim... Eu não quero sofrer por amar alguém que nunca vai me amar!
Jaqueline: Tudo bem, você diz que tem que ser assim, mas não disse como é nesse momento... São coisas diferentes... Como você se sente, de verdade?
Vinicius: Eu não sei... Depois de um tempo com ele ontem, minha vontade era não me separar mais dele... Sabe? Ficar enrolando pra ele não me deixar lá...
Jaqueline: Entendi... Não vou me intrometer... O Lucas tem que decidir por si mesmo.
Vinicius: E se um dia você souber que ele tá namorando? Não só eu, mas qualquer garoto por aí...
Jaqueline: Se ele for feliz assim, e estiver certo do que quer... Eu vou apoiar ele.
Vinicius: Eu queria ter uma mãe como a senhora. Pra minha mãe eu sou motivo de vergonha...
Jaqueline: Não fica assim, querido! Você sabe que estamos aqui pro que você precisar.
Vinicius: Eu sei... É que tudo ainda é muito recente pra mim! Eu nem sei o que to sentindo.
Jaqueline: Posso usar uma frase clichê também?
Vinicius: Pode. - ele disse rindo.
Jaqueline: Siga seu coração.
Eles ficaram em silêncio e não falaram quase nada depois disso. Então eu me levantei e fui ao banheiro, fiz questão de fazer barulho, pra que eles me ouvissem. E depois que sai do banheiro, fui até a cozinha.
Jaqueline: Que milagre! - ela disse quando entrei. Os dois estavam sentados, estava muito frio! Minha mãe estava com várias blusas.
Lucas: Senti falta de alguém roncando... - falei olhando pro Vinicius e depois dei um beijo no rosto da minha mãe.
Vinicius: Eu ronco?
Lucas: To brincando. Bom dia! - falei me sentado ao lado dele na mesa.
Vinicius: Bom dia!
Lucas: O que te fez acordar tão cedo?
Vinicius: Não consegui dormir!
Lucas: Você não dormiu nada?
Vinicius: Não...
Lucas: Por que?
Ele demorou um pouco pra responder, no final, disse: Sei lá... O Sono não veio.
Lucas: Hum.
Olhei pra minha mãe, mas ela desviou o olhar.
Lucas: Faz tempo que vocês estão aqui?
Jaqueline: Alguns minutos.
Vinicius: Mas e você? Por que levantou tão cedo?
Lucas: Não sei... Só acordei, e vi que você já tinha levantado... Aí levantei também.
Vinicius: Preocupado comigo?
Lucas: Não é legal te deixar sozinho... Não sabia que minha mãe tava com você.
Ele já estava sorrindo quando falei aquilo. Depois eu só me levantei e aproveitei que o leite ainda estava quente no fogão, peguei um copo e sentei na mesa de novo. O Vinicius estava com uma blusa só, e estava encostado na cadeira com os braços cruzados.
Lucas: Tá com frio?
Vinicius: Não...
Lucas: Me dá sua mão... - falei estendendo a mão aberta para ele.
Ele levou alguns segundos pra segurar minha mão. E quando segurou, eu senti que ela estava muito gelada!
Lucas: Eu vou pegar uma blusa minha pra você...
Vinicius: Não precisa...
Lucas: Precisa sim!
Saí da cozinha, fui até meu quarto, peguei uma blusa no guarda roupa e desci até a cozinha de novo. Mas eu mudei de ideia! Tirei meu casaco e ofereci pra ele.
Lucas: Toma, esse aqui já tá quente!
Ele não recusou. Pegou meu casaco, vestiu e fechou o zíper até o pescoço. Eu coloquei a blusa que tinha acabado de pegar no meu quarto. Ela estava gelada, o Vinicius nunca ia se esquentar com ela. E tomei meu leite em alguns goles. Depois comi metade de um pão com requeijão, e só.
Jaqueline: Foram dormir que horas? O Lucas tá com uma cara de acabado...
Lucas: Não sei direito... Era mais de duas da madrugada...
Jaqueline: Meu Deus! Vão dormir mais um pouco!
Lucas: Eu perdi o sono! Pode ir se quiser, Vini.
Vinicius: Vini?
Eu me arrepiei. Foi automático chamar ele daquele jeito. Nem sei porque, nunca tinha chamado ele assim!
Lucas: Desculpa.
Vinicius: Tudo bem. Mas eu perdi o sono também... - ele disse com uma risadinha. Minha mãe ficou em silêncio!
Lucas: Mãe, você já tá pronta pra sair? Por que se você só sai mais tarde?
Jaqueline: Eu acordo cedo porque preciso de um tempo pra despertar! Não gosto de sair de casa com sono...
Lucas: Hum, então tá...
Logo, minha mãe começou a contar histórias de quando eu era bebê! Não tenho ideia de como chegamos nesse assunto. Algumas vezes eu me senti um pouco envergonhado. Mas o tempo todo o Vinicius ficou atento, ouvindo cada palavra! Rindo do que era engraçado e se surpreendendo com alguma travessura que eu tinha feito. Parei e pensei que eu nunca imaginaria que o Vinicius era gay, ele não tinha trejeitos. Não era "afeminado", como muitos dizem, se eu me esquecesse de tudo, de repente, e me pedissem pra olhar pra ele e pro Davi, e depois perguntassem qual dos dois era gay... Eu provavelmente eu diria que era o Davi!
Deixei de prestar atenção na conversa, comecei a pensar nos fatos! Eu estava fazendo muito isso nos últimos dias, de repente eu me desligava do mundo, e ficava pensando em várias coisas ao mesmo tempo! Talvez fosse só o nervosismo por tudo o que estava acontecendo! Ou talvez fosse algo mais complexo que isso! Eu não sabia bem qual era a causa, mas eu sabia que me desligava totalmente do ambiente a minha volta!
Quem me trouxe de volta foi o Davi, me cutucando com o braço.
Lucas: Desculpa, eu me distraí... O que você disseram?
Jaqueline: Eu estava contando do dia que você descobriu o que tinha entre as pernas...
O Vinicius riu.
Lucas: MÃE... - senti meu rosto pegar fogo.
Jaqueline: Ele era um bebezinho ainda... Eu dei banho nele e coloquei ele sentado na cama, meio enrolado na toalha. Então ele mesmo puxou a toalha e quando viu o amiguinho dele, começou a rir.
Lucas: Mããe... - falei me encolhendo na cadeira. O Vinicius ria o tempo todo. E isso motivava ela a continuar.
Jaqueline: Ele cobria com a toalha, depois puxava a toalha de lado e começava a rir... Ele fez isso várias vezes! Nós teríamos filmado se tivéssemos uma câmera de vídeo!
Lucas: Ainda bem que não tinham...
Vinicius: Imagino a cena...
Jaqueline: Foi engraçada.
Vinicius: Ta vermelho por quê? - ele perguntou rindo.
Lucas: Por que você acha?
Ele continuou rindo, e eu não falei mais nada sobre o assunto. Depois a minha mãe contou mais algumas coisas não muito constrangedoras e chegou no assunto do meu pai... Ela parou de rir tanto e contou toda a história ao Vinicius. Que ouviu sem interromper. Ao final, ele perguntou: E seu marido era agressivo?
Jaqueline: Só uma vez ele me segurou forte pelo braço durante uma discussão! Mas foi a única vez.
Eu não gostava de ouvir aquela história. Me fazia pensar em tudo o que minha mãe passou com meu pai. E acho que você já percebeu que eu tenho uma empatia muito forte.
Quando minha mãe terminou de falar sobre meu pai, o Vinicius contou pra minha mãe como o pai dele era. Ele não disse nada que ainda não tinha dito pra mim, por isso não vou escrever aqui. Seria só informação repetida!
Jaqueline: Meu marido não era assim no começo. Nós vivíamos bem juntos! Mas então ele ficou estranho... Acho que foi quando começou a sair com outra mulher...
Vinicius: Entendo...
Jaqueline: Como você tem se sustentado, Vinicius?
E então ele contou sobre os cursos de programação que já tinha feito, disse o quanto gostava da área e que estava fazendo trabalhos Freelancers até que conseguisse um emprego fixo. Minha mãe desejou sorte, e depois levantou da mesa. Pegou os copos e canecas e juntou tudo na pia! E então o Vinicius saiu da cozinha, dizendo que precisava ir ao banheiro.
Jaqueline: Filho...
Lucas: Que foi, mãe?
Jaqueline: Não deixei esse garoto sozinho... Ele precisa muito de alguém como você...
Lucas: Eu sei, mãe... Não vou deixar!
Ela sorriu, e algum tempo depois o Vinicius voltou. E eu perguntei: E então? O que vamos fazer hoje?