Mais que uma lembrança [parte 20]

Parte da série Mais que uma lembrança

Vinicius: Desculpa, Lucas... Eu acho que vou te deixar na mão! Tenho que ir pra casa, se eu não fizer meus trabalhos, ninguém vai fazer por mim.

Minha mãe me olhou por de trás dele com uma expressão de "Nooossa".

Lucas: Vamos fazer assim, então... Você fica aqui de manhã... E de tarde eu vou lá e te ajudo. Pode ser?

Vinicius: Você não sabe programação...

Lucas: Você me ensina... E você tem que fazer documentação também, certo? Eu posso fazer a documentação... Sei lá... Eu ajudo de algum jeito!

Ele suspirou, depois sorriu e disse: Tudo bem, então!

Mas em poucos minutos eu não resisti e voltei deitar. O Vinicius também deitou de novo... Eu acabei dormindo e acordei só nove horas. E então a situação se inverteu! O Vinicius ainda estava dormindo, então eu me levantei silenciosamente, saí do quarto e encostei a porta. Ainda estava muito frio!

Eu fui ao banheiro e depois desci até a cozinha, comi meio pão. A conversa entre minha mãe e o Vinicius que eu tinha ouvido de manhã não saía da minha cabeça. Eu não pensava tanto no que minha mãe disse, eu estava mais pensativo no que o Vinicius tinha dito! Peguei meu leite e fui até a sala, me acomodei em um sofá e fiquei assistindo TV enquanto o Vinicius não acordava.

Acho que ele levantou cerca de meia hora depois! Entrou na sala com aquela cara fofa de sono.

Vinicius: Bom dia de novo!

Lucas: Bom dia!

Vinicius: Por que não me chamou?

Lucas: Achei que seria melhor deixar você descansar...

Vinicius: Faz tempo que você acordou?

Lucas: Acho que uns vinte minutos ou meia hora! Não mais que isso.

Vinicius: Acho que metade dos seus planos foram embora...

Lucas: Eu não tinha nada em mente... O que você acha?

Vinicius: Quer dar mais uma volta?

Lucas: Com esse frio?

Vinicius: É!

Lucas: Vamos, ué!

Ele vestiu a minha blusa de novo, colocou um tênis e depois nós saímos. Finalmente eu sai de casa sem ver o Davi na rua! Nós acabamos indo para o mesmo parque que o dia anterior! Haviam alguns casais de velhinhos andando, outros estavam sozinhos, outros estavam com os netos. Nós nos sentamos num banco, porque a grama estava molhada! Algumas pessoas que passavam por nós ficavam nos olhando, algumas nos cumprimentavam, outras só olhavam, algumas nem mesmo olhavam!

Vinicius: Posso fazer uma perguntinha?

Lucas: Claro!

Vinicius: Qual seu plano pro futuro?

Fiquei pensativo. Eu nunca tinha parado e feito planos consistentes pro futuro.

Lucas: Ainda não sei o que fazer depois que acabar o ensino médio...

Vinicius: O Gustavo diz que você é muito inteligente! Não gosta de informática?

Lucas: Gosto de computador... Só que programação, eu nunca tive experiência com isso pra saber se eu ia gostar de trabalhar com isso pro resto da vida.

Vinicius: Entendi... Do que mais você gosta?

Lucas: Pensei em engenharia civil... Sei lá, eu quero alguma coisa na área de exatas!

Vinicius: Certo... Mas e sobre a vida fora da faculdade?

Lucas: Tipo?

Vinicius: Sei lá... Você pretende se casar? Essas coisas...

Lucas: Ah, não me decidi muito bem sobre isso.

Vinicius: Tem alguém com quem você queira passar a vida?

Lucas: Sim, tem...

Percebi que ele olhou pra baixo.

Vinicius: Entendi... Então é melhor você correr atrás dessa pessoa... Não pode perder ela!

Lucas: Eu já to perdendo...

Vinicius: Não pense assim! Seja mais otimista e confiante!

Não respondi. Olhei pro chão e tive vontade de chorar mais uma vez. Enxuguei as lágrimas e me xinguei mentalmente por ser tão fraco.

Vinicius: Não precisa esconder as lágrimas. Chorar não é uma fraqueza.

Nos entreolhamos.

Lucas: E você? Tem planos pro futuro?

Vinicius: Viver um dia após o outro, estudando e trabalhando pra me sustentar e esperando alguém que me ame de verdade aparecer... Se é que alguém um dia vai me amar de verdade!

Lucas: Claro que vai... Você é um cara legal.

Vinicius: Obrigado. Você também é!

Lucas: Obrigado.

Vinicius: Lucas?

Lucas: Que foi?

Vinicius: Nunca faça nenhuma besteira com essa pessoa que você ama! Você não imagina como dói.

Ele só não sabia que eu já tinha sentido algo parecido na pele. Não sei se o que o Davi fez foi melhor ou pior do que o que o namorado do Vinicius fez... Mas eu tinha sofrido por causa daquilo.

Lucas: Não vou.

Vinicius: Ótimo.

Depois nós caminhamos um pouco, ele ficou fazendo piadas sobre as coisas e contando histórias engraçadas da vida dele. Algumas voltas e ele olhou o relógio.

Vinicius: Liga pra sua mãe...

Lucas: Por que?

Vinicius: Vem almoçar comigo? Depois nós vamos pro meu apartamento.

Lucas: Não precisa, Vinicius!

Vinicius: Mas eu quero! Liga pra sua mãe! Ou você não quer mais ficar perto de mim?

Não respondi. Peguei o celular e liguei pra minha mãe. Avisei que ia almoçar com o Vinicius. Ela quis saber onde, mas eu disse que não sabia (o que era verdade). Ela concordou e então desligamos.

Vinicius: Tudo certo?

Lucas: Tudo certo!

Vinicius: Então vem comigo.

Ele me levou pra almoçar num restaurante próximo ao apartamento dele. Ela um lugar fechado, mesas bem afastadas umas das outras, e apesar de quase todas as mesas estarem ocupadas, estava tudo bem silencioso.

Lucas: É aqui que você come todos os dias?

Vinicius: É! Você esperava mais?

Na verdade eu esperava menos. Mas não falei isso pra ele.

Lucas: Não! É um bom lugar.

Vinicius: Oi Júlia! - ele disse pra uma garçonete que passou pela mesa.

Júlia: Oi Vinicius! Arrumou um companheiro?

Olhei pra ele e vi que ele estava vermelho. Percebi que ela sabia sobre ele, e com "companheiro" ela quis dizer "namorado".

Vinicius: É meu amigo.

Júlia: Ah, certo. Perdão. E qual seu nome? - ela disse me olhando.

Lucas: É Lucas.

Júlia: Prazer, Lucas. Meu nome é Júlia. - ele se inclinou e beijou meu rosto. - Agora eu tenho que voltar ao trabalho. Se precisarem de algo me chamem. - e então ela se afastou.

Vinicius: Fez ensino médio comigo. Ela é legal.

Lucas: Ela sabe que você é gay?

Vinicius: Sabe... Ela achou que você é meu namorado.

Lucas: Ela sabe do que tem acontecido?

Vinicius: Sabe o essencial... Ela estranhou quando comecei a vir almoçar aqui todos os dias, então eu contei uma versão mais enxuta da história!

Lucas: Entendi...

Vinicius: Ela recebeu os vídeos no WhatsApp...

Lucas: Acho que só eu não recebi esses vídeos...

Vinicius: Não perdeu muita coisa... Você acha vídeos melhores no xvideos.com!

Achei engraçado o que ele disse.

Lucas: Mas que não conheço os atores do xvideos pessoalmente!

Ele riu e concordou. Ficamos alguns segundos em silêncio.

Lucas: Você parece ser tão mais velho!

Vinicius: Valeu. - ele disse num tom irônico.

Lucas: Não! Não quero dizer fisicamente, nem de rosto! Eu quero dizer que você parece tão responsável, é mais maduro do que muita garotada de 18 ou 19 anos por aí.

Vinicius: Algumas vezes a vida bate na cara e te faz crescer.

Fiquei em silêncio. Eu não queria pensar na história dele de novo, porque a tal empatia me deixaria mal!

Vinicius: Mas o ponto não é bater forte, certo?

Ergui as sobrancelhas, e ele continuou: Já viu aquela cena do filme do Rocky Balboa, quando ele diz que ninguém vai bater tão duro quanto a vida, mas não se trata de bater duro, mas sim do quanto você pode apanhar e seguir em frente!?

Lucas: Nunca tinha ouvido...

Vinicius: Tem no youtube, pesquisa "motivacional rocky balboa" que você vai encontrar!

Lucas: Vou fazer isso...

Enquanto comíamos, eu me dei conta de que o Davi tinha me deixado em paz! Eu não recebia mensagem dele desde o dia anterior. Me senti um pouco mal por isso, já que eu sabia o que ele sentia por mim. Disse a mim mesmo que eu devia passar um tempo com ele, uma hora ou outra, como amigo.

Quando acabamos de comer, e fomos embora, eu quis pagar minha parte mas o Vinicius não deixou... E então saímos e fomos para o apartamento dele!

Cumprimentei o porteiro, Afonso, e ele me chamou pelo nome, então se lembrava de mim. Subi com o Vinicius e ele trancou a porta depois que entramos. Hora ou outra dava pra ouvir passos no andar de cima. Estava quente dentro do apartamento, o que me obrigou a tirar as blusas e ficar de calça e camisa. O Vinicius fez o mesmo, depois deu um suspiro e disse: Hora de trabalhar?

Lucas: Você tem muito o que fazer?

Vinicius: Pouca coisa... Só terminar uma coisinha aqui... O prazo de entrega é amanhã!

Lucas: Falta muito?

Vinicius: Não... Deixa eu te mostrar?

Lucas: Vamos lá...

Nos sentamos na mesa dele e ele abriu algumas coisas no computador. E então ele me mostrou um texto, cheio de espaçamentos que depois eu descobri ter um padrão.

Vinicius: Cada uma dessas linhas é uma instrução que indica ao computador o que ele tem que fazer. O programador escreve essas instruções e depois compila em um programa que o computador executa!

Lucas: Não parece tão difícil!

Vinicius: Não se engane! Não se esqueça que você ensina o computador a fazer tudo o que você precisa! Nem tudo é tão simples...

Ele falou um pouco mais de programação e depois ele foi terminar o trabalho que tinha... Ele foi me explicando tudo conforme ia fazendo as coisas, e eu fui entendo tudo. Quando percebeu que eu estava me dando bem, ele começou a falar coisas como orientação à objetos, polimorfismo, sobrecarga e sobrescrita... Eu me senti perdido no começo. Mas quando ele parou de falar pra se concentrar, e eu lembrei de tudo que ele tinha dito no começo, e comecei a associar as coisas e entender cada coisa aos poucos, me dei conta de que eu estava me dando bem com a teoria. Esperei ele terminar o que estava fazendo, e falei: "Já entendi".

Ele me olhou assustado.

Vinicius: O que é você? - ele disse rindo, e eu ri junto. Mas depois ele ficou sério. - Tá se interessando?

Lucas: Sim, parece legal.

Vinicius: Às vezes a gente fica meio estressado e precisa sair dar uma volta pra não quebrar o computador... Mas se você tiver um bom raciocínio lógico, vai se dar bem com um pouco de estudo.

Lucas: Acho que sim...

Vinicius: Já pensou? Nós dois trabalhando juntos?

Lucas: Coitado dos clientes...

Ele riu.

Lucas: Você faz sites também?

Vinicius: Sim... é o que eu mais faço.

Lucas Deve ser legal criar um site.

Vinicius: Eu sofria com sites no começo... Não tinha criatividade pra criar o design... Mas aos poucos eu fui pegando o jeito.

Lucas: Entendi.

E então ele abriu uma tela preta no computador. Ele não explicou o que estava fazendo. Mas ele digitava algumas coisas e teclava 'enter'. Depois de teclar 'enter' algumas vezes, a janela do sistema que ele estava fazendo abriu. Era bem organizada, tinha uma barra de ferramentas na parte superior da janela, parecida com o Word ou o Excel, mas com menos frescuras. Ele mexeu um pouco, disse que estava testando o que tinha acabado de programar, pra ver se estava funcionando corretamente. Ele repetiu o teste várias vezes, cada hora ele fazia de um jeito, acho que pra testar como o programa ia se comportar em cada situação que ele pôde imaginar.

Depois de algum tempo, ele me olhou e disse: "Pronto".

Lucas: Já?

Vinicius: Como assim "Já?"? Já viu que horas são?

Olhei o relógio e já era quase quatro da tarde!

Lucas: Nossa! Acho que perdi a noção do tempo.

Ele riu. Se levantou da cadeira e me chamou até a cozinha.

Vinicius: Obrigado pela ajuda.

Lucas: Ajuda? Eu não ajudei em nada!

Vinicius: Ajudou sim... Você ficou aqui comigo. Foi a melhor coisa que poderia ter feito.

Olhei pra ele e nossos olhares se encontraram.

Vinicius: Obrigado por ser meu amigo!

Lucas: Não tem que agradecer por isso.

E então ele suspirou e perguntou se eu queria coca cola.

Lucas: Aceito, valeu.

Vinicius: Melhor não faltar da academia hoje, né?

Lucas: É!

Vinicius: A cada dia que passa eu me encho mais e mais de porcariada e menos tenho vontade de ir pra academia...

Lucas: Desse jeito vai perder o corpão...

Ele riu... Às vezes eu me esquecia de que ele não sabia que eu era gay! Pelo menos ele levava certas coisas na brincadeira.

Quando deu nossa hora, ele se trocou, passamos da minha casa pra eu me trocar também e deixar minhas blusas lá, depois fomos. Enquanto estávamos na academia, não conversamos muito, mas em um certo momento, o Vinicius chamou minha atenção balançando a mão meio discretamente. Olhei pra ele, que apontou pra um garoto que estava chegando. Devia ter mais ou menos a nossa idade, mas era um pouco mais baixo que nós. Estava com cara de bravo, cabelo espetado, não consegui ver seu rosto direito porque ele estava meio longe de mim. Entendi que tinha sido aquele garoto que tinha provocado o Vinicius. Não fiquei olhando muito pra ele, mas vi que quando ele viu o Vinicius, torceu o nariz e foi pra outro canto.

Vinicius: Você viu o baixinho?

Lucas: Vi... foi nele que você bateu?

Vinicius: É... rs.

Lucas: Ele tava te provocando por causa do vídeo, né?

Vinicius: Provavelmente...

Lucas: Que otário...

Ele suspirou.

Vinicius: Lucas...

Lucas: Hum?

Vinicius: Você não tem absolutamente nada contra quem é gay?

Lucas: Não!

Vinicius: Eu nunca conheci um hétero que se aproximou tanto assim de alguém, sabendo que a pessoa era gay.

Lucas: É melhor parar de julgar as pessoas como se fossem todas iguais.

Vinicius: Você é diferente até demais...

Lucas: Desculpa se to te incomodando.

Vinicius: Não começa com drama! Não to reclamando! Só to fazendo uma observação...

Lucas: É... tá certo! Desculpa...

Vinicius: Você bem que poderia ir ver filme no meu apartamento hoje, né? O que acha?

Em dois segundos eu pensei bastante sobre o assunto... Mas eu não via nada de mal nisso. O Vinicius não era como o Davi!

Lucas: Tudo bem...

Vinicius: Tá! Então você quer passar da sua casa e já ir comigo? Ou você vai depois?

Lucas: É você quem vai cozinhar?

Vinicius: Bobo... Mas acho que não! Hoje não to com cabeça pra isso.

Lucas: Entendo... Bom... Eu vou passar da minha casa, quero ir ver o Bruno de novo... Depois que eu voltar eu me arrumo e vou pro seu apartamento.

Vinicius: Tudo bem... O Afonso já sabe seu nome e eu disse que você pode entrar quando quiser, pode subir.

Lucas: Beleza.

Foi então que nos separamos! Eu fiquei na minha casa e ele foi embora!