Um novo amigo
Parte da série Till My Heart Stops Beating, Círculo sem Fim
Tudo aquilo não poderia acontecer nem mesmo em meus sonhos mais mirabolantes, daqueles que passa a noite inteira se desenrolando, mas não era sonho...
Era quarta feira, numa tarde quente de dezembro, e eu estava sem camisa, esparramado no sofá, com ventilador ligado – eu detestava ar-condicionado – assistindo a nova coleção que acabara de ganhar com a terceira temporada completa de meu seriado musical favorito.
- Carlos, meu filho? Você pode fazer o favor de buscar seus irmãos no colégio? A mãe tem que acabar de fazer a torta que a dona Lurdes encomendou – pediu minha mãe, entrando na sala de estar.
Essa era Dona Marta, mãe de cinco filhos, e esposa perfeita, sem falsos moralismos, meus pais tinham um casamento perfeito, como eles mesmos diziam, eternos namorados. E apesar de meu pai ser um dos contadores mais bem sucedidos de Resende, ela ainda gostava de trabalhar, fazendo tortas e doces por encomenda.
- Claro, mãe! – Respondi, me levantando do sofá e indo até o meu quarto, colocar uma camiseta.
Eu detestava andar sem camisa. Não sabia se era por eu ser gay. Sim, eu sou gay... Não assumido.
Subindo as escadas eu parei no topo, quando reconheci uma voz vinda do quarto do meu irmão, que não era a dele, uma voz de homem, mas ao mesmo tempo de moleque, uma voz que mexia com os meus instintos. Uma voz que parecia se aproximar da porta...
- E aí, Carlos? Tranquilo? – Perguntou Hugo, o loiro surfista perfeito, melhor amigo do meu irmão, que veio há menos de um ano para a cidade para estudar, apertando a minha mão e dando tapinhas no meu ombro.
- Tudo perfeito! – Respondi meio que hipnotizado, não por algo em especial, mas pelo conjunto. Além do fato de que aquela era a primeira vez que existia de fato um diálogo e um contato (físico) entre a gente.
Parecia que ele tinha percebido o meu olhar estático e levantou a sobrancelha, me fazendo despertar do transe.
- Eu estava pensando... Amanhã é meu aniversário... O primeiro que eu passo em Resende, pensei em chamar uns caras da faculdade, e lá do curso, o seu irmão... A gente vai à pizzaria amanhã à noite, o que você acha de aparecer?
- Eu tenho que ver antes com os meus pais se eles liberam.
- Tudo bem, eu entendo. Mas eu espero que você possa ir, seria muito bom ter você lá, pra comemorarmos JUNTOS.
Não sei por que, mas aquele “juntos” tinha me soado algo subentendido.
Ele sorriu e desceu, com as chaves do carro na mão, o que me fez perceber que ele estava indo embora.
- A gente se vê – disse, quase que forçado demais, tentando manter uma conversa, ou talvez a estadia prolongada dele por ali.
Eu esperei ele desaparecer ao pé da escada, para que fosse para o meu quarto, comemorar silenciosamente o primeiro convite do gostosão.
- Oi, maninho – disse meu irmão, me assustando. Eu torci para que ele não tivesse visto minha tresloucada felicidade, aparentemente sem razão, e me virei.
- Oi, Darlan – Respondi.
Darlan era o completo oposto de Hugo, o surfista loiro, ele estava mais para o hipster1 moreno gostosão. Darlan era o mais velho dos meninos, e se ficássemos de frente um para o outro, diriam que éramos reflexos no espelho, a não ser pela altura.
- Então, maninho. O que você acha de emprestar um boné irado para o seu irmão? – Pediu ele.
- Você não tem boné, não? Sempre que vai sair me pede um, ou uns óculos, ou alguma coisa.
- Então, né? Ter eu até tenho, mas é que os seus são mais legais que os meus, e você tem tantos. Eu devo ter dois ou três.
- O que você não pede chorando que eu não faço sorrindo?
- Ah, moleque! Você é o melhor, carinha – disse ele, indo para o meu closet.
Sim! Eu tinha um closet!
Eu fui logo atrás dele para escolher uma camiseta, peguei uma branca lisa, porém justa – eu não tinha um corpo daqueles que se via e se dizia: Caramba! Mas era algo considerável para uma pessoa que tinha 14 anos e não costumava praticar exercícios.
Nós descemos juntos, e só quando estávamos em frente de casa e Hugo levantou de um banquinho para falar com ele, que eu me toquei que meu irmão ia sair.
- Eu vou dar uma passadinha no shopping com o Hugo, para comprar uma beca para amanhã, mas volto antes do jantar, se a mãe perguntar... – disse Darlan, antes de irmos para lados diferentes.
Eu segui pela calçada, o colégio em que meus irmãos estudavam não era longe de casa, quando passei a quarta quadra, atravessei o sinal e entrei na rua.
Quando cheguei lá, o porteiro já estava no portão aberto e algumas crianças já saiam acompanhadas de seus pais ou irmão. Eu fui até a turma dos dois para buscá-los – eles eram gêmeos.
- Boa tarde, professora – cumprimentei a responsável pela turma. – Hoje a Cecília e o Diego se comportaram?
- Boa tarde, irmão – cumprimentou ela. – Os dois se comportaram sim, eles são crianças muito boas.
- Que bom! E tem algum recado nas agendas?
- Nós vamos fazer um passeio, e eu preciso da autorização do seu pai ou da sua mãe.
- Ah, sim. Obrigado, professora – disse, pegando as mochilas que os dois vieram me dar.
- Carlos! – disseram em coro, me abraçando.
- Digam tchau para a professora.
- Tchau, tia Bruna – disseram os dois, cada um dando um beijo nela.
Nós fomos saindo, e enquanto passamos pelo portão, uns meninos mais velhos ficaram me olhando.
Eles sempre faziam isso, eu só não sabia se era por interesse, ou se porque eles percebiam que eu era diferente... Gay!
- Vocês lancharam hoje? – Perguntei.
- Lanchamos. A mamãe colocou biscoito de goiaba com suco para a gente – disse Cecília.
- Legal! E já que está um pouco calor o que vocês acham de tomarmos um milk-shake bem gostoso de morango? – Sugeri.
- Milk-shake de morango? Meu preferido – disse Diego.
Aqueles eram os gêmeos de oito anos, Cecília e Diego, quase que meus filhos. Eu era quem os ajudava com as tarefas e todo o resto, quando meus pais não tinham tempo.
Então nós fomos para o shopping onde tinha um quiosque de sorvetes. Eu comprei um milk-shake pequeno para os dois dividirem e um médio para mim.
Lá havia dois meninos também comprando alguma coisa, e assim que comecei a fazer meu pedido os dois olharam para mim, com certeza reparando no meu modo delicado e polido de pedir, não comum de meninos da minha idade.
- Olha como é que coloca a boca no canudo – disse um deles, e os dois começaram a rir. Meus irmãos, claro, não tinham entendido nada.
Eu demonstrei indiferença e fui embora.
Eu e meus irmãos fizemos um caminho diferente do que eu fiz para buscá-los. Nesse caminho nós passamos por duas escolas, uma delas um colégio aonde eu queria estudar depois de me formar no ensino fundamental.
- E aí, Carlos? Tranquilo? – Disse um dos alunos que já estava indo embora.
- Oi, Tom. Beleza e contigo?
- Bem, também. A galera vai fazer um churrasco lá em casa, porque tem um pessoal que tá indo para outro colégio, tem um pessoal que vai sair de Resende, você podia aparecer lá.
- Ah, sei lá. São os seus amigos do colégio, tudo mais velho que eu também...
- Que isso, velho. A galera é tudo de boa. E você tá vindo estudar aqui, você também vai fazer parte da galera.
- Pode ser... Tá bom. Eu vou dar uma organizada no meu final de semana e te dou um toque.
- Beleza, mas aparece sim.
- Pode deixar. Falou.
- Valeu, cara. A gente se fala.
Eu concordei e saí.
Repensando na situação: Um churrasco no verão, na casa do Tom, um carinha gatinho, tinha piscina, os amigos deles também eram todos... A maioria gatinhos. Mas, contraditoriamente era isso que eu mais evitava, ficar num grupo com muitos garotos. Eu tinha meio que vergonha e também os papos não eram os mesmos, apesar de eu enrolar um pouco sobre meninas bonitas, futebol e jogos de videogame, não era só do que eu gostava de falar.
Quando nós estávamos chegando em casa – minha casa ficava ao lado de outra escola, onde os garotos não eram tão mais velhos assim, mas também eram quase todos gatinhos – meu celular tocou.
- Fala comigo? – Disse, atendendo a ligação de Guto, um dos meus dois melhores amigos gays.
- Amigo! Eu e o Celo estamos aqui no shopping e você não sabe com quem nós acabamos de encontrar.
- Hugo e Darlan – disse, estragando a surpresa.
- Você comprou uma bola de cristal e esqueceu de avisar?
- Eles acabaram de sair daqui de casa. Meu irmão disse que ia comprar uma roupa para amanhã. Só um momentinho.
“Vocês vão subindo e falem à mamãe que eu estou conversando com um colega meu que estuda aqui no Oliveira e que eu já estou indo”.
- Tá – disse Diego, que sempre me encobria. Pra mim, ele já até sabia que eu era gay, mas não sabia o que era gay, quer dizer, ele sabia que eu fazia coisas diferentes de outros homens, mas não sabia que essas coisas definiam um gay.
- Voltei! – Disse ao telefone.
- Está no alto falante, o Celo também está escutando – disse Guto.
- Oi, amigo – era Celo.
- Oi.
- Pode contar, o que tem amanhã?
- É aniversário do Hugo, e ele vai a uma pizzaria comemorar com os amigos dele e me chamou, disse que adoraria comemorar o aniversário comigo – disse, vomitando as palavras.
Eu só pude ouvir o grito de felicidade dos dois ao telefone, parecia até que eram os dois que iam sair com o cara.
- Calma, gente. Eu também fiquei muito feliz. Mas vocês tem que se lembrar, é o Hugo. E nós ainda nem definimos em qual orientação ele se aplica.
- Eu continuo com a minha opinião de sempre, para mim ele é bi curioso e ainda só não descobriu porque está esperando alguém, no caso você, que o dê certeza disso – disse Celo.
- Vocês são dois doidos. Se eu sempre seguisse a opinião de vocês é capaz de hoje estar mais rodado que a Amanda.
- Impossível – disse Guto, me fazendo rir, mais pela espontaneidade dele, do que pela piada.
- E posso saber o que os senhores foram fazer sem minha ilustríssima presença no shopping? – Perguntei.
- Eu vim comprar uma sunga nova com o meu irmão, e aí encontrei o Guto que veio fazer alguma coisa com a mãe – disse Caco.
- E cadê o Olívio e a tia?
- Minha mãe foi para casa e me deixou aqui com o Caco – disse Guto.
- E meu irmão encontrou com uma amiga dele e me deixou ir embora sozinho – disse Caco.
- Nossa! Seu irmão é outro que... Gente, o que é aquilo – disse.
- O pior você não sabe. O Guto já tinha encontrado com a gente assim que chegamos e meu irmão foi experimentar a sunga e chamou o Guto para ver como estava, na inocência.
- Essas são as vantagens de estar no armário! – Disse.
- Nós não estamos no armário, amigo. Estamos no closet.
Nós três rimos ao telefone, nos despedimos e eu entrei em casa.
Assim que entrei em casa, fui cumprimentar minha irmã mais velha, Luana, com um beijo e um abraço.
Luana era a mais velha de nós cinco, também era a menina mais bonita das primas, e de longe a mais inteligente da sua turma. Ela estudava Engenharia Civil, na mesma universidade em que Hugo e Darlan estudavam.
Logo depois eu fui a cozinha, onde minha mãe terminava de arrematar uma torta enquanto conversava com meu pai, que tomava uma xícara de café sentado a mesa.
- Boa tarde, pai – disse, abraçando-o e beijando-o o rosto.
Meu pai era o Dr. Carlos, doutor de verdade, ele tinha doutorado em alguma área de Contabilidade. E meu contato com o meu pai era carinhoso do jeito que era, porque ele não era como os outros homens de sua época, antigo e machista.
- Boa tarde, meu filho. Como foi o seu dia?
- Foi legal, pai. Eu fui a escola, dei uma revisada na matéria para a prova de amanhã e depois fui ver televisão, e estou voltando da escola dos meninos. E o do senhor?
- Foi bom, também. As coisas estão indo bem lá no escritório.
- Pronto! Esta torta está pronta, agora eu vou começar a fazer o jantar – disse minha mãe.
- Pai, eu queria pedir uma coisa para o senhor – comecei.
- Vai pedir adiantamento de mesada? – Perguntou meu pai.
- Não, pai. Eu tenho controle sobre a minha grana, já tenho trezentos reais guardados para a viagem de formatura.
- Meu menininho vai ser um grande administrador como o pai!
- Hum... Quem sabe? Mas o que eu queria mesmo falar com o senhor é que amanhã os meninos vão a pizzaria comemorar o aniversário do Hugo. E ele me chamou, aí eu queria saber se o senhor me deixa ir.
- Ah! Se for isso, claro que eu deixo, meu filho. Só quero que tenha cuidado, a que horas vai ser?
- Eu vou ver com o Darlan. Mas eu não acho que eles vão voltar tarde não.
- Então você combina com o Darlan o horário, porque o pai vai te levar e te buscar.
- Carlos? A pizzaria fica do outro lado da rua.
- Aquele pedaço ali é perigoso à noite. Você sabe disso, Marta. Estamos combinados, meu filho?
- Claro, pai.
“Eu vou tomar banho antes do jantar”.
- Tem que pegar uma toalha limpa, eu coloquei a sua para lavar – disse minha mãe.
- Tá – disse, saindo.
Quando cheguei ao meu quarto, Darlan estava no closet guardando o boné.
- Oi, Darlan. Como foi lá no shopping?
- Comprei uma camisa com desfiado falso.
- Legal! Depois você me mostra?
- Mostro. E valeu pelo boné, ficou muito maneiro.
- Que bom – disse, enquanto pegava uma toalha – E por falar em amanhã, o pai pediu para perguntar a que horas vai ser a parada lá na pizzaria.
- A gente deve chegar lá umas oito horas.
Eu concordei.
- Você pode marcar com o papai de ligar para ele quando estiver saindo de lá. Eu devo ir dormir na casa do Hugo, para a gente estudar para a prova de amanhã.
Foi aí que uma possibilidade de realidade, muito triste, passou pela minha cabeça.
- O Hugo tem namorada? – Perguntei.
- Espera... Você não está achando que eu e o Hugo...? Qual é, maninho. Eu não tenho nada contra gays, mas eu sou espada.
E ele tinha percebido o que eu tinha pensado.
- Não, nada disso. É só que eu nunca o vi com menina nenhuma, só perguntei por perguntar mesmo.
- Cara! Eu posso garantir que o Hugo também é espada.
- Não tem nada ver com isso, maninho. Foi só uma pergunta – menti.
- Beleza. Você vai tomar banho, não é? Eu vou para o meu quarto.
- Tá, tchau.
Eu fui para o banho e depois liguei o computador para acessar meu perfil na rede social, e assim que o abri vi que Hugo tinha me mandado um convite de amizade - eu aceitei, lógico! – E depois que eu respondi todos os recados fui jantar.
Assim que voltei para o quarto meu celular tocou, e adivinha quem era?
- E aí, Carlos. Belezinha, fera? – Era ele, com sua voz hipnotizante.
- Oi, Hugo. Tudo tranquilo e contigo?
- Estou ótimo, agora então!
- Agora?
- Eu liguei para saber se seus pais deixaram você ir à pizzaria com a gente?
- Eu falei com o meu pai e ele disse que sim, mas quer me levar e me buscar.
- Ah! Que bom.
- Você... Ficou tão feliz... Aconteceu alguma coisa boa?
- Ah... É... Minha mãe acabou de mandar uma mensagem que chegou meu novo computador.
- Hum!
- É... E como está a escola?
- Bem. Semana que vem já começam as minhas provas. Amanhã meus amigos vão vir estudar aqui em casa.
- Se você estiver precisando de ajuda em alguma coisa?
Na hora eu tentei pensar em alguma coisa, mas não tinha. Eu já tinha passado em quase tudo, e era eu que ia ajudar meus amigos em matemática.
- Está tudo bem. Obrigado.
- Então, tudo bem. A gente se fala?
- Claro! Amanhã, a gente se vê.
- Eu vou ficar esperando. Boa noite.
- Boa noite – disse, desligando o celular, com um largo sorriso no rosto.